A carta da morte

Não consigo apagar da minha cabeça as imagens que, não vendo, imaginei. Imagens que sobrepus às visionadas e que me lançam num mar de desconforto, apreensão e que me deixam incomodada. A única coisa que vimos foi uma cozinha, com uma mesa e um frigorífico. Vimos um sapato caído. Vimos inúmeras vezes a janela com as persianas ainda abertas. Imagino o cão que agonizou durante semanas sem água nem comida até que se esvaiu e se consumiu nessa morte lenta. Prefiro imaginar que a sua dona teve morte imediata. Não consigo pensar noutra que não uma morte súbita. Não consigo nem quero. 

No dia em que soube a notícia acordei várias vezes durante a noite e antes de adormecer lá me vinham à cabeça estas imagens macabras. Pensava na dor que alguém deve sentir quando partimos e pensava nestas pessoas que não têm quem lhes sinta dor, quem lhes sinta saudades ou quem se preocupe verdadeiramente. Pensava se todos nos deveríamos sentir culpados por situações como esta e acho que era isso que no fundo me assombrava, a culpa.

Como é que podemos prevenir este tipo de situações? Deverei eu assumir a responsabilidade pelo desaparecimento daqueles que vivem próximos de mim mas sobre quem nada sei? Deverei eu imiscuir-me na vida de quem provavelmente não o quer? Ou será a solidão tão dolorosa que qualquer pergunta, ainda que aos meus olhos inconveniente, seria bem-vinda? 

A vida dá e tira e por vezes a solidão é ela própria o resultado de vidas que de alguma forma a procuraram, ou apenas o resultado de famílias desestruturadas, quebradas e disfuncionais. Outras vezes a solidão chega com a morte de um companheiro e instala-se sem pedir permissão.

E nós o que podemos fazer? O que devemos fazer? O que está ao nosso alcance? Estará a sociedade providência a falhar? E o estado providência? Terá entrado numa espiral de onde já nunca mais vai sair?

Só na última semana foram descobertos os corpos de quatro idosos que morreram sós... Como poderemos combater a solidão e dar a mão a quem dela precisa mas não a pede? Urge pensarmos nisto!

1 comentário:

  1. Já deves ter lido o que escrevi sobre isto. A mim, nesta história, tem-me atormentado a culpa que se tenta imprimir a nós. A nós, sociedade anónima. Obviamente que mais que tudo, me custa imaginar a dor que pode ter sentido a senhora; também não quero imaginar que tenha havido outra causa que não a morte súbita. Mas, não consigo deixar de pensar que infelizmente acontece, sempre aconteceu e voltará a acontecer. Até porque há pessoas que gostam de viver sozinhas e que vivem lúcidas e autónomas até ao fim dos seus dias. E entre estas, há muitas que por conjunturas da vida, não têm familiares. E se por qualquer motivo não têm descendentes e ao mesmo tempo são idosas, provavelmente a maior parte dos seus conhecidos já partiram ou estão debilitados. Não fomos "nós" que falhámos. Não foi a "sociedade-providência". Foi o Estado-Providência. O que tinha obrigação de ouvir os que se queixara; que tinha obrigação de cruzar as informações da segurança social, das finanças e da polícia judiciária (n sei se esta última chegou a ser contactada). A própria autarquia, a própria Junta de Freguesia, deviam estranhar de qualquer forma a ausência de um membro. O SNS, de onde uma idosa desapareceu de repente, deixando de frequentar consultas. Como podias tu, eu ou alguém fazer alguma coisa de diferente? Como também escrevi, se fosse alguém "meu", eu própria teria arrombado a porta ou, no mínimo, ligado para as Chaves do Areeiro fingindo ter-me esquecido da chave. Mas não sendo alguém nosso, como podemos nós adivinhar? O Estado. O Estado é que tem que cuidar de nós.

    Quanto aos corpos descobertos na última semana, parece-me uma questão de "agenda setting". Quantos corpos não se vão encontrando ao longo do ano... Só mortes súbitas, calcula-se que haja cerca de 20 por dia. Mas agora, porque este caso foi mais noticiado, noticiam-se todos. Ainda bem que sim. É preciso alertar para o facto de estarmos abandonados pelas instituições que parecem só preocupar-se com o nosso dinheiro e com a nossa contribuição.

    Calor de Outono

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