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"entrada e saída de viaturas"

Ai se a curiosidade matasse... bem, eu certamente estaria "morta, matada, morrida", como dizíamos quando éramos miúdas! Sempre fui curiosa, faz parte de mim. Esta vontade de saber mais acompanha-me desde que nasci. Na ponta da língua sempre estiveram o porquê?, como?, quando?,para que serve?, posso abrir o presente?, para quem é?, o que está lá dentro? Enfim, uma curiosidade saudável mas aguçada!

E aquele portão... ai, aquele portão dava cabo de mim... estava sempre fechado. Ninguém entrava, ninguém saia... Estava arranjado, bem pintado, com uma barra alentejana de um azul turquesa que enchia o olho e com uma cortina da mesma cor no postigo. E era exactamente abaixo do postigo que tudo se complicava na minha cabeça. 

Como é que um portão com aquele ar de casa de bonecas depois tinha uma placa que nos transmitia a seguinte mensagem PROIBIDO ESTACIONAR - entrada e saída de viaturas.
Adorava conseguir espreitar lá para dentro, tinha a certeza que encontraria uma bicicleta cor-de-rosa com um cestinho à frente, ou até mesmo uma Famel decorada com autocolantes floridos e um capacete de menina a acompanhá-la. Sim tudo menos um carro, que por ali não conseguiam passar veículos de quatro rodas.


Mas o portão nunca se abriu e eu nunca percebi o que escondia; quem lá vivia e que tipo de viatura conduzia.

Enfim, o "número 9 azul turquesa" foi para dentro da minha caixa de curiosidades por resolver. Está lá juntamente com "o que é que estava dentro daquele embrulho fantástico que a Sofia levava na mão naquela noite de verão em que fomos ao jardim", com "o que se esconde dentro de todos aqueles baús antigos guardados no sótão", e com outras tantas outras curiosidades ainda, e talvez para sempre, por resolver.

*foto do Buscassóis

Ali estava ela... no meio do nada...

Tinha passado muito tempo... a ela parecia-lhe terem passado apenas algumas semanas, mas a verdade é que tinham sido meses.

Quando voltou achou que tudo estaria na mesma. Que as pessoas tinham ficado congeladas no tempo e que voltariam à vida quando ela também voltasse. Tinha a certeza que ia encontrar tudo no mesmo sítio. A caneta, o lápis e até os amigos.

Mas a vida dos outros continuou correr mesmo quando a dela parecia ter ficado em standby.

Ela voltou e apesar de tudo parecer igual pouca coisa se mantinha inalterada. As canetas e os lápis mantinham-se na secretária mas tinham mudado ligeiramente de lugar; as pessoas também lá estavam - eram as mesmas mas estavam diferentes... tinham estabelecido novos hábitos e novos relacionamentos entre si e de repente tudo parecia enevoado e cinzento... ela sentiu-se perdida e desencaixada.

E a vida continuava e o mundo girava e os dias passavam e lá estava ela... no meio do nada... a fazer os possíveis por reencontrar o seu lugar.

Por entre palmeiras

Caminhavam juntos no parque, mão na mão. Caminhavam em silêncio. Não havia muito a dizer. O papel acabado de chegar falava por si. Tinha sido mobilizado para Angola. 

"Devíamos ter dado o salto antes de o chamarem..." - Pensava ela.

"Raios... porque é que não nos fomos embora enquanto podíamos?!" - Pensava também ele.

"Será que ele me vai pedir que vá com ele para o Ultramar?"

"Se calhar casávamos já e leva-a para lá... vivia com os meus Tios mas sempre estávamos juntos ao fim-de-semana..."

"Se ele me pedir aceito..."

"Não tenho coragem... não se faz... levá-la para longe dos pais e da irmã..."

- Eu vou mas volto! - disse ele.

- Eu espero por ti... - disse ela.

E assim continuaram, a caminhar juntos por entre palmeiras.

De pés em pés

De pés em pés a professora olhava atenta... um, dois, três... marcava o ritmo.

As meninas, de cabelo apanhado atrás, pés descalços, maillot e tutus cor-de-rosa, estavam entusiasmadíssimas. Era a primeira aula. Era a primeira aula mas elas ansiavam calçar as sapatilhas. Queriam saltar no ar e voar como borboletas.

As suas mães assitiam orgulhosas. Aquelas crianças eram uma extensão de si próprias, iriam ser as bailarinas que as mães sonharam mas nunca foram. As meninas espelhavam a infância que elas queriam ter tido. Estas mães sonhavam com o Lago dos Cisnes e com o Quebra-Nozes.


A verdade é que a maior parte destas meninas não chegará a dançar em pontas. Cansam-se e querem experimentar natação, judo ou ginástica.

Mas para estas mães este primeiro momento já as encheu de orgulho e já valeu por tudo!

Para lá da porta

Tinha 7 anos acabados de fazer e passava o tempo a sonhar acordado. Sonhava que viajava em carros voadores, que lutava contra dragões e acordava princesas adormecidas. Sempre tive uma imaginação fértil, fecunda em personagens fantásticas: cães falantes, artistas de circo, pilotos de formula 1 e feiticeiros. Apesar de ser filho único nunca me senti só, na minha mente pululavam amigos imaginários.

Naquele dia vinha já atrasado e corria pela estrada afogueado, quando de repente vi aquela porta. Parei. Sei que os carros vinham depressa e me buzinavam. Senti-me a cair. Fui invadido por um calor imenso, depois por um frio polar. Levantei-me e caminhei na sua direcção. Toquei levemente no vidro, parecia um espelho de água. Passei a mão para o lado de lá e senti uma temperatura agradável, convidativa. Mas detive-me, resolvi não entrar. Sentei-me e assisti a uma cena de filme:  todos os meus amigos imaginários caminhavam, falavam, riam e pareciam convidar-me a juntar-me a eles. Como a Alice seguiu o coelho também eu me senti tentado a segui-los. Mas de repente apareceu uma personagem estranha à minha mente, que montava a cavalo e me perguntou:

Foto de Buscassóis - Maio 2011

- Não estás atrasado? António! Ainda há muito por fazer...

Acordei já na ambulância... resultado: uma perna partida em três sítios e um valente susto para o condutor que de repente me viu saltar para a frente do seu carro.

Desde esse dia que sempre que olho para uma porta de vidro o vejo lá... bigode e chapéu de festa e o cavalo engalanado. Agora que cresci e já mandei embora todas as personagens eles continuam por aqui. Acompanham-me calma e tranquilamente, parecem ser a minha sombra e zelar pelo meu bem-estar... 


RV

Que os há, há! São vermelhos e suculentos.

É a Francisca que faz as compras lá para casa. Geralmente ao Sábado de manhã aproveita que os miúdos ficam com o João, que os leva ao parque no seu momento semanal de pai e filhos e vai ao mercado.

Foto de Buscassóis - Maio 2011
Esta ida ao mercado transporta-a para o quintal dos seus avós. Quando era pequena passava as tardes com eles. Adorava ajudar o avô a tratar da horta, arrancavam as pequenas ervas que iam crescendo (jura que um dia chegou a encontrar um trevo de quatro folhas!) regavam e apanhavam as couves, a salsa e os coentros, os tomates, os morangos... ai os morangos... enfim, a diversidade dependia da estação do ano. Nunca tinha percebido como é que um pedaço de terra tão pequeno conseguia ser tão fértil. Tinha para si que isso só acontecia por causa do amor que os avós dedicavam àquela terra.

Tempos que já lá vão... os avós já partiram, a casa vendeu-se e a Francisca nunca mais lá voltou. Para recordar resta-lhe apenas a ida ao mercado no sábado de manhã e todas as memórias daqueles tempos.

A Francisca já conhece os vendedores e eles já a conhecem a ela. Na banca da D. Maria costuma comprar a abóbora, as cenouras e as batatas; na do Sr. Zé as maçãs, peras, bananas e mais alguma fruta; há ainda a banca da Florinda peixeira, que esta semana lhe amanha um belo Robalo para assar no forno. Mas quando chega a Primavera onde a Francisca gosta mesmo de ir é à banca da D. Estrela, tem os melhores morangos do mundo... pequenos, muito vermelhos e deliciosos.

Quando chega a casa a Francisca já sabe como vai ser, a chuva já se foi embora, os dias de sol são cada vez maiores e os miúdos lembram-se todos os anos da mesma brincadeira. Os dois correm para os seus braços e perguntam-lhe com os olhos a brilhar:

"E morangos Mãe?! Já há morangos?!"

"Hum... - responde a Francisca - Que os há, há! São vermelhos e suculentos. Mas... e vocês merecem?!"

Inevitavelmente, depois de um ataque de cócegas, muitos beijinhos à mistura, e muitos "Sim mãe, claro que merecemos!" acabam os três na cozinha a preparar o almoço e a devorar morangos!

A vista da Janela

Para quem não vivia ali no bairro aquela era apenas mais uma janela.

Foto de Buscassóis - Maio 2011
Para os que viviam, aquela era a janela da Rosinha. Moça nascida e criada por ali, naquela casa. Era naquela janela que a sua mãe, em tempos idos, namorava com o seu pai. Era naquela janela que a mãe lhe lia as cartas do pai, quando ele esteve no Ultramar. Rosinha era bebé, não se lembra, mas ouviu esta história da boca da sua mãe vezes e vezes sem conta... foi também naquela janela que a mãe recebeu a triste notícia... o pai da Rosinha tinha morrido na Guiné. 

Mas aquela janela encerrava em si tantas outras recordações, tantos outros momentos. Era ali que Rosinha fazia os seus trabalhos de casa e era ali que a Maria, a São e a Luísa a iam buscar para a levarem para o largo da igreja e saltarem ao elástico até o sol se pôr.

Foi também naquela janela que a Rosinha chorou a morte da mãe e ficou responsável por si própria. Foi ali que colocou a sua máquina de costurar Singer e se tornou modista como a mãe tinha sido.

O que poucos sabem é que para o António aquela não é apenas mais uma janela. Aquela é a a janela da ROSINHA. Para o António aquela é a janela onde a Rosinha põe o vaso de flores vermelhas para lhe dar o sinal... o sinal de que pelas onze da noite a porta estará encostada e o convidará a entrar...

Personagens quase invisíveis...

Estava sentada num banco de jardim. À sua volta viam-se jovens, crianças, famílias inteiras que passeavam e aproveitavam o dia de sol. Ela estava só e o seu olhar entorpecido perdia-se numa garrafa de cerveja.

Vestia-se como uma hippie. Teria 40 e tal anos, cabelo curto e calçava sandálias. Debaixo do banco, que partilhava apenas com a sua mala e um saco de supermercado, escondiam-se garrafas de bebida: duas ou três minis e uma garrafa de uma qualquer bebida espirituosa. Dentro do saco de supermercado podíamos ver gargalos e caricas que espreitavam. Sabia-se que pouco faltaria para essas também se juntarem às garrafas vazias debaixo do banco. Era só uma questão de tempo...

A forma como parecia falar com a garrafa que tinha na mão deixava perceber que aquelas não teriam sido as primeiras bebidas do dia. Estávamos no final da tarde e para si o sábado teria sido certamente muito longo...

Parecia triste, não, não bebia para se alegrar, bebia para se afundar ainda mais. Bebia porque precisava de bater bem fundo. Não se queria distrair dos seus problemas, queria recordá-los e recordá-los e continuar a recordá-los. Queria recriminar-se e sofrer pelos seus erros, por aqueles que a levaram àquela situação. Merecia-o - pensava.

E assim o mundo continuava a girar: as crianças continuavam a rir e a dar gargalhadas por tudo e por nada; os cães passeavam com os seus donos; os pais brincavam com os filhos; o benfiquista meio louco continuavam a passear-se na sua bicicleta e a ouvir a sua música e ela ali estava. Só e atormentada. E naquele sábado perfeito ninguém reparava nela, ninguém se queria incomodar, ninguém a queria ver. 

Tinha-se tornado invisível...